A independência do TCU


Tribunal de Contas da União (Foto: Arquivo Google)

Como verdadeiro órgão de Estado, deve o TCU exercera sua nobre missão, contribuindo para o ajuste do curso da governança sob bases mais republicanas e democráticas
Sérgio Guerra, O Globo
O Tribunal de Contas da União (TCU) está no centro de uma das maiores questões da República brasileira: o controle das contas do governo Dilma Rousseff. A questão, a saber, diante das chamadas “pedaladas fiscais” e edição de decretos da Presidência da República que ampliaram os gastos públicos supostamente sem suporte legal, é se o TCU é uma entidade independente ou não do Congresso Nacional.
Com base no clássico princípio da separação tripartite de poderes de Montesquieu, há quem afirme que o TCU é, apenas, um braço técnico de apoio ao Legislativo, que, por sua vez, poderá rever a decisão da Corte de Contas.
Numa primeira leitura do artigo 70 e caput do artigo 71 da Constituição, poder-se-ia cogitar que o TCU não é independente. O texto constitucional indica que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União é exercida pelo Congresso com o “auxílio” do TCU. Estaria, portanto, sujeito à revisão de seus atos pelo Legislativo.
Sob uma interpretação sistemática desses dispositivos, com outros da própria Constituição, verificar-se-á que não depende do Congresso. Além dos órgãos que estruturam as três funções clássicas inerentes à legislação, à administração e à jurisdição (por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, a Chefia do Poder Executivo), o TCU, como o Ministério Público, é um órgão independente do Congresso.
As funções do TCU estão definidas na Constituição, de modo que sua competência não está subordinada, hierarquicamente, não só ao Congresso, mas, a qualquer outro órgão estatal. Inclusive, para o exercício de suas funções, seus ministros gozam das mesmas garantias e prerrogativas dos ministros do Superior Tribunal de Justiça.
É fato, quanto ao controle de contas, que o TCU tem função consultiva; contudo, sua decisão é de competência exclusiva, não sendo cabível uma “revisão” por meio de qualquer recurso, inclusive “hierárquico impróprio” ao Congresso. O TCU elabora pareceres individualizados referentes às contas anuais do chefe do Executivo, assim como diante de dúvidas sobre a aplicação de dispositivos legais envolvendo matéria de sua competência. No caso de possível rejeição de contas, a decisão final de controle de contas, de forma independente (não revisora), é do Congresso.
No mais, o TCU tem função muito além da simples resposta a consultas, evidenciando a sua independência. Deve, por exemplo, realizar, por iniciativa própria, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial nas unidades administrativas dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Encontrando ilegalidades, deve aplicar sanções, como multas, afastamento do cargo, responsabilização pessoal dos envolvidos, dentre outras identificadas na execução de despesa ou irregularidade na apresentação das contas.
A Constituição também é objetiva ao prever que compete ao TCU, de forma autônoma, sustar a execução dos atos administrativos impugnados, representando ao órgão competente sobre irregularidades ou abusos apurados. No caso de contratos administrativos, a competência do TCU é ampla, até mesmo para decidir caso o Congresso ou o Executivo não efetivem medidas saneadoras no prazo de 90 dias.
Até mesmo o controle interno dos órgãos tem vínculos com o TCU por força constitucional. Os seus responsáveis, diante da constatação de qualquer irregularidade ou ilegalidade nas contas públicas, devem dar ciência ao TCU, sob pena de responderem solidariamente com o causador do dano ao Erário.
A independência dos Tribunais de Contas, no exercício de verdadeira função neutral, já foi submetida ao Supremo Tribunal Federal (STF) em alguns casos. Um desses casos foi apreciado pelo STF na ADI 523. O voto do ministro Carlos Ayres de Britto é absolutamente didático sobre a independência do TCU. Deixou patente que ele não faz parte dos Três Poderes clássicos (Legislativo, Executivo ou Judiciário). O TCU se liga diretamente à pessoa do Estado, sem a mediação de nenhum dos poderes estatais.
No mesmo sentido, na ADI 4.190, o decano do STF, ministro Celso de Mello, já teve oportunidade de sustentar que a competência institucional do TCU, como órgão de Estado, também não deriva de “delegação” do Poder Legislativo. Traduz emanação que resulta, primariamente, da própria Constituição.
Diante do exposto, pode-se inferir que, no âmbito das competências institucionais do TCU, há, portanto, clara distinção entre competências. A competência técnica é exclusiva para apreciar e emitir parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo chefe do Poder Executivo, e a competência política, do Congresso, destina-se ao julgamento das contas com base nos estudos e informações apurados pelo TCU.
Dando-se adeus à clássica teoria da separação dos Três Poderes, com amparo na doutrina do jurista americano Bruce Ackerman (“Good-bye Montesquieu”, 2010), está nas mãos dos ministros do TCU a oportunidade de evidenciar a importância da sua independência frente aos demais Poderes, inclusive já garantida por importantes manifestações de ministros do STF.
Como verdadeiro órgão de Estado, deve o TCU exercer, autonomamente, a sua nobre missão, contribuindo para o ajuste do curso da governança executiva sob bases mais republicanas e democráticas.
Sérgio Guerra é professor titular de Direito Administrativo da FGV Direito Rio 

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